segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O SAMBA E A CANÇÃO

Eduardo Selga
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Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...


Samba-Canção, in A Teus Pés (Ana Cristina César)


Como em toda lírica que escapa, por meio da resignificação, ao impulso do verso fácil; que procura não ser mais uma habitante de Lugar-Comum, esse superpopuloso lugarejo imaginário onde o pseudopoeta se imagina Drumond, a palavra, em Samba-Canção, poema de Ana Cristina César, está longe de ser finalidade em si mesma, gratuita e desbotada. É, antes, ferramenta a construir no interior do texto múltiplos sentidos que, inobstante, não esmaecem o que parece ser o intuito maior do eu-lírico na obra em análise: o amor (carne e lágrimas) apaixonado pelo outro e alguns de seus muitos efeitos colaterais no comportamento de quem ama. Assim é que a presença de palavras surpreendentes por não pertencerem ao universo do discurso romântico (termo aqui utilizado sem vínculo necessário com o Romantismo) utilizado amiúde, não lança névoas que ofusquem o efeito imagético primordial. É o caso de, por exemplo, “modernista”, “comércio” e “avara”. Tais vocábulos “intrusos” se agregam à textura do poema provocando não apenas a resignificação da própria palavra em algumas situações, como também do sentimento que batizamos “amor”.

Acerca da primeira circunstância, exemplificando, “modernista” traz consigo pouca ou nenhuma relação imediata com “moderno”: é, antes, o cinismo que acompanha o sorriso quando localizado no canto da boca, o esgar da incredulidade (“risinho modernista / arranhado na garganta”). Ilustra bem a segunda assertiva, creio, o fato de que o amor é revisitado e visto sob a ótica feminina, distante daquela imagem estereotipada construída pela escola romântica. Ou seja, o eu-lírico não empresta voz à mulher que, perante o amor, assume posição sonhadora, passiva e que se deixa levar pelo ser amado. Ao contrário, a identidade feminina que se nos apresenta em Samba-Canção possui ambos os pés fincados no terreno do racional e da atitude que visa a conquistar ou manter o amor de alguém (“eu fiz tudo pra você gostar / fui mulher vulgar”). Nesses versos, mesmo a aparente subserviência aos caprichos sexuais de outrem é tática a serviço dessa finalidade. Ainda que essa entrega seja sincera (sim, é possível amar sem perder o chão). Há nos versos uma feminilidade mais que moderna, contemporânea, que assume as rédeas do sentimento e não permanece espuma flutuante no oceano do amor idealizado (“e um dia emburrei-me / vali-me de mesuras / (era uma estratégia)”), nau de porcelana e à deriva e implorando ao seu capitão manipule o leme com sensibilidade.

Mas o poema de Ana Cristina César não é, na literatura realizada no Brasi, eco literário de um feminismo militante, que muitas vezes assume o caráter de machismo às avessas. Tanto que o feminino nos versos é traçado para muito além de eum evento biológico ou de uma condição social: é um princípio motriz da espécie humana, vinculado ao Eros freudiano, e que, portanto, não se restringe. Conforme é possível observar nos nono e décimo versos: “malandra, bicha, / bem viada, vândala,”. A palavra “bicha”, referindo-se ao eu-lírico feminino, nos remete ao universo homossexual masculino, ao homem que se prefere mulher por mais bem se adequar ao já citado princípio humano. “Viada” (uma palavra que provoca o susto da surpresa) está semanticamente transposta para o gênero feminino, como que pretendendo demonstrar o quanto a dicotomia macho-fêmea é um fórceps em sentidos vários, inclusive lingüístico. “Bicha” e “viada” representam a celebração dessa fatalidade que é viver, a alegria travesti, que beira à caricatura na medida que se pretende mais mulher que a própria.

Ao término dos vinte e cinco versos sem métrica regular, mas com ritmo bem marcado, tem-se apenas aqui e ali, ponteando, as rimas na acepção clássica e a quase completa ausência de inversões sintáticas na estrofe aparentemente escrita num fôlego só. Esse conjunto provoca, até o penúltimo verso, um ritmo linear, tenso e reflexivo (porém não lento). Mas eis que, no suposto término do poema publicado em A Teus Pés em 1982, lê-se “mas tantas, tantas fiz...” Há nas palavras como que um cansaço de mãos dadas com um arrependimento.

O gênero musical que intitula o poema também ajuda a explicá-lo, até certo ponto. Evoca um passado sonoro brasileiro que teve suas primeiras vozes ao encerrar-se a década de 1930 e se ergueu tendo o amor mal resolvido por tema, tratado em melodias suaves. Como suave e melódico é o texto de Ana Cristina que tese. Uma suavidade que não se confunde com a letargia própria daquele estilo de fazer música. O ritmo do poema é acelerado como num samba e, nesse traço, as vírgulas exercem papel relevante ao criar intervalos regulares e velozes. Por seu lado, as palavras formam, de quando em quando, uma aliteração tônica que lembra o som abafado que mal chega aos lábios quando brota a tristeza por não se alcançar o carinho da pessoa amada; que lembra o choro à força contido (e contido também no sentido de estar dentro de, não apenas o ato repressor). Refiro-me às seqüências “risinho - “modernista – arranhado – garganta” e “burra - porque”. Esse movimento sonoro não é análogo ao samba, que estimula o ouvinte à dança, mas à canção introspectiva, aqui entendida como melodia arquitetada para os ouvidos dos que sofrem a “dor-de-cotovelo”, público alvo do gênero musical que dá título ao poema.

Mas o caleidoscópio não se ausenta nem mesmo nos dois campos em que acima distingui os versos de Ana Cristina: os mesmos encadeamentos produzidos a partir do fonema “erre”, já citados, lembram, onomatopeicamente, o arranhar do reco-reco, típica ferramenta do samba que lhe serve de acompanhamento. Não essencial, portanto. Dele o gênero musical de que falo pode se abster, embora talvez perca em beleza rítmica. E ausência de companhia é tudo o que o eu-lírico lamenta. Afinal pode-se viver sozinho, mas para muitos a ausência do outro faz a vida carecer de tempero e cor.

Retornando ao fim, sobre o qual fiz rápida menção no início da presente análise, o tom é de sussurro, do vigésimo primeiro ao vigésimo quinto versos. O sibilar de “talvez”, “luz”, “spots”, “apenas” e “fiz”, entretanto, deixa no rastro do penúltimo verso (“talvez apenas teu carinho”), uma pergunta cuja resposta aparenta ares de relevância maior que a real: o leitor estaria diante de uma reflexão do eu-lírico ou de um arrependimento confesso ao pé do ouvido da pessoa amada? Digo que apenas parece como quem afirma que a imagem impressa num espelho não é o objeto refletido, e sim sua luz que retorna às nossas retinas, enganadora. É uma ilusão semelhante supor, às pressas, que as duas possibilidades sejam, entre si, antagônicas. Talvez a luminosidade do poema ofusque, contraditoriamente, uma percepção mais acurada das imagens nele registradas para um leitor afoito. Quero dizer que se existe uma confissão também há, coabitando, uma atitude reflexiva. Ademais, poemas não vêm à luz para responder às dúvidas das quais o leitor, no ato de interpretar, se engravida. Pelo contrário, quanto mais releituras, mais interrogações e inquietude. E não raro, os versos fingem.

Como ocorre em Samba-Canção, que não acaba quando termina. Mantém sua circularidade de sentido se for aceito que o último verso (“mas tantas, tantas fiz...”) pode, facilmente, encaminhar a leitura à primeira estrofe. Se o texto fosse escrito em prosa, ficaria assim construída a frase: “mas tantas, tantas fiz... que perdi tantos poemas” (a subordinada significando felicidades possíveis, mas não vividas).

O primeiro, o segundo e terceiro versos já demonstram um caráter distintivo de Samba-Canção, qual seja, a presença de algumas palavras e frases que vestem a aparência da obviedade, mas que trazem um habilidoso trabalho de manipulação semântica. Experimento evidenciar: “Tantos poemas que perdi”, além do significado já expresso no parágrafo anterior (o eu-lírico deixa de saborear hipotéticos momentos felizes), pode também representar uma derrota (palavras e palavras carinhosa e inutilmente pronunciadas ou escritas no intuito de conquistar ou não perder a pessoa por quem o amor é nutrido). Quanto ao segundo verso, que continua no seguinte, “de graça” pode fazer referência a palavras doces ditas ao telefone pelo sujeito amado, mas que não foram retribuídas pelo eu-lírico. É o desdém, às vezes teatral, que faz parte da estratégia feminina quando o assunto é o amor voluptuoso, e nesse caso a exclamativa “taí” (contração de “estar” com “aí” –do outro lado da linha telefônica?-), e que ao mesmo tempo é uma apropriação do samba Ta-Hi, a exclamativa, disfarçada pela vírgula, marca uma mudança de postura que se firma a partir de “eu fiz tudo pra você gostar,” (quarto verso) até o décimo primeiro (“talvez maquiavélica,”). Mas “de graça” não suprime uma outra alternativa, que para melhor entendimento implica numa reestrutura sintática: “Tantos (poemas), de graça, que ouvi,” pode apenas e simplesmente referir-se a palavras bem humoradas proferidas pela segunda pessoa do discurso, que é com quem se fala, mas há mesmo no poema esse interlocutor? Adiante falarei a respeito.

O jogo a que me referi anteriormente, que pertence ao arsenal feminino da sedução, evidencia-se do décimo segundo verso (“e um dia emburrei-me,”) ao vigésimo (“o próprio cor-de-rosa,”). Particularmente curioso, dentro desse raciocínio, é o ato confesso do eu-lírico feminino: o esquema tático resultou numa infantilidade pouco esperta (“e um dia emburrei-me, / vali-me de mesuras / (era uma estratégia), / fiz comércio, avara, / embora um pouco burra, ”) e a conclusão irônica: pouco domina o exato alcance dos instrumentos sedutores (“porque inteligente me punha / logo rubra, ou ao contrário, cara / pálida que desconhece / o próprio cor-de-rosa,”). Por um outro caminho, nesse mesmo entrecho, pode-se chegar a lugar distinto se “cor-de-rosa” for interpretado, metaforicamente, enquanto espírito viçoso. Nesse caso, temos o desânimo, a tristeza, que impedem a manifestação desse vigor latente. E aí temos em “cara / pálida”, num enjambemant, o seu contraponto e o fracionamento do indivíduo. Essa angústia Freud explica ao afirmar, em O Mal-Estar na Civilização, que inexiste vida social organizada sem algemar a sexualidade e a agressividade inerente ao homem. Ou seja, é impossível ser feliz. Ora, há um tom agressivo que, domesticado, quase surdo, perpassa o poema. Os recortes “vândala”, e “maquiavélica” ilustram o argumento, mas a evidência maior, me parece, está em “meia-bruxa, meia-fera” (sexto verso), em que o numeral usado facilmente se confunde com advérbio, e diz ao leitor, como não quisesse de fato dizê-lo: o eu-lírico feminino admite sua metade bruxa e sua metade fera. Nesse sentido não há a idéia de “quase”.

O refinado coloquialismo impregna o texto de um perfume que traz a prosa à flor da pele. O fato de o único ponto (final?) estar situado no início da obra ratifica esse efeito. Também por isso afirmei linhas atrás, por outras palavras, que o verso inicial é o termo e o recomeço do poema. Tudo o mais são vírgulas, reticência (afinal, há arremate a ser construído pelo leitor) e parênteses que, estrategicamente, quebram o ritmo como no extinto samba de breque, em que a melodia era interrompida de súbito para dar espaço a falas. Lembra uma longa carta íntima e confessional, um diário, uma conversa em que não é importante a resposta do outro. Porque o eu-lírico parece imerso em monólogo interior.

Sob essa ótica, a segunda pessoa é, a um só tempo, silêncio absoluto e imagem retórica para, voltando à idéia anteriormente sugerida de arrependimento confesso, ser um ponto de apoio, um repositório de divagações. As rimas internas (“perdi” / “ouvi”; “malandra” / “vândala”) não pertencem apenas à estrutura formal da obra: é a voz da intimidade que, contraditoriamente, necessita transbordar.

Ouçamos o ritmo de Samba-Canção, no qual há um saboroso exercício de intertextualidade a partir de dois sambas antigos e famosos da música brasileira, Pelo Telefone e Ta-Hi, nos terceiro e quarto versos, respectivamente.

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